23/05/2010

Além das 4 linhas


 Taí uma boa letra do blog "Olhar Crônico Esportivo" do Emerson Gonçalves, para quem cultiva esse sentimento que chamam de paixão, pelo do futebol. Uma reflexão para quem curti o esporte e suas peripécias, para além das quatro linhas.
Bolivar
 "Uma das melhores biografias de um dos maiores herois e mitos latinoamericanos – “Simón Bolívar”, de Gerhard Masur – tem umas seiscentas páginas (Bolívar é um dos “libertadores” que nomearam nossa mais importante competição continental). Nelas, o número de menções ao Brasil pode ser contado nos dedos, se a memória não me falha, das duas mãos.
 Mas não ficarei surpreso se rever o livro e minhas anotações (perdidos entre as caixas que trouxeram meus livros de São Paulo para Santa Rita do Passa Quatro) e descobrir que os dedos de uma só mão sejam suficientes. Detalhe: na mais longa e importante referência ao Brasil, coisa que ocupou metade de uma das seiscentas páginas, o Império do Brasil foi retratado de maneira nem um pouco simpática. Nas primeiras décadas do século XIX o Brasil era absolutamente desimportante para os co-irmãos da chamada America Hispânica.
 E assim continuou no decorrer dos séculos XIX e XX. Claro, em alguns momentos, como a Guerra do Paraguai, esse quadro mudou, mas passamos, a bem dizer, quase cinco séculos sem nos importarmos uns com os outros, a América Portuguesa e a América hispânica.
 Faz parte de nosso, digamos, caráter nacional, sentirmo-nos diferentes dos peruanos, colombianos, venezuelanos e outros vizinhos. Vã ilusão, pois temos mais a nos unir do que a nos separar, principalmente o atraso em todos os sentidos e a quase inexistência de reais sentimentos de cidadania e de prática democrática.
 Para nós e nossa arrogância, a América Latina sempre foi, igualmente, desimportante.
 Calma, este Olhar Crônico Esportivo continua a ser sobre futebol, estou chegando lá.
 Com o crescimento da paixão pela Libertadores e sua importância para nossos clubes, começou a nascer um certo interesse em acompanhar a CONMEBOL. É comum neste OCE e em muitos outros sites e blogs, lermos manifestações de leitores manifestando sua irritação com medidas tomadas pela Confederação e dizendo que a CBF deveria peitar e decidir tudo a favor do Brasil e de nossos clubes. Esse é o sentimento básico: como somos grandes (verdade), ricos (falso) e importantes (falso), temos o direito (muito mais falso) de impor nossa vontade. O nome desse comportamento, curiosamente, é imperialismo (será que isso diz alguma coisa?). Com base nesses sentimentos e falsas verdades, o então presidente do Flamengo – Marcio Braga – e o permanente presidente da CBF – Ricardo Teixeira – fizeram campanha contra os jogos na altitude boliviana. Teixeira, para meu espanto á época, chegou a apresentar uma moção nesse sentido em reunião da CONMEBOL, total, imediata e irrevogavelmente derrotada pelo votos de todos os demais membros da Confederação, inclusive a Argentina. Como Teixeira de bobo nada tem e é uma raposa política, só posso acreditar que antes de apresentar a moção ele já tinha combinado com os demais que aquilo não passaria de farsesca mise-en-scène, cujo endereço era tão somente o público brasileiro. Sim, porque esse resultado era absolutamente previsível. Entretanto, apesar dessa obviedade para quem conhece um quase nada de história do continente, ainda há muita gente que segue acreditando que podemos chegar e impor nossa vontade.
 O que eu quero dizer com essa “pequena” introdução é que nós, como povo, como torcedores de futebol, até mesmo como lideranças políticas, desconhecemos a América do Sul. Nos dois sentidos: de ignorá-la e de não conhecê-la. E tudo isso se aplica à Copa Libertadores de America.
 Se entramos com cinco clubes na competição, é certo que os cinco serão considerados favoritos e dois farão a final. Se entrarmos com seis o discurso será o mesmo, apenas mudando o numeral. Com sete, oito, nove, dez, não importa, o sentimento e o discurso serão os mesmos. Exceto se o Boca estiver presente. Aí, talvez por uma derivação do conhecido “complexo de vira-lata”, abriremos espaço para o favoritismo xeneize, mesmo que o time esteja caindo pelas tabelas.
 Quando o Once Caldas conquistou o título em cima do poderoso Boca, depois de eliminar o São Paulo na semi-final, a surpresa foi total. E o inconformismo também, o mesmo que toma conta de nossas manifestações faladas, escritas, pensadas, sempre que a LDU vence, ou o Universidad ou qualquer outro. O Universitário de Lima quase tirou o São Paulo da competição. Perdeu nos pênaltis. Deixou a competição com apenas dois gols tomados em oito jogos. Chega a ser extremamente irritante ler o que se escreveu e se escreve a respeito desse time. O menosprezo é a palavra e sentimento de ordem e o mesmo se aplica ao Caracas, Libertad e muitos outros times.
 Continuamos ignorando e desconhecendo as Américas, tanto a do Sul como a Latina. Uma outra América, a do Norte, é odiada e incompreendida, sendo ao mesmo tempo, incongruente e paradoxalmente, o sonho maior de consumo e de vida da quase totalidade das pessoas, seus críticos mais ferrenhos aí inclusos.
 Ok, agora chegou ao fim a introdução, que nem vou chamar, brincando, de pequena, mesmo que com aspas. O Flamengo foi bem na Libertadores?
A presidente Patrícia Amorim disse que sim, destacando a chegada do time às quartas-de-final da competição. Muitos desdenharam, muitos ironizaram, muitos ignoraram essa declaração. Este OCE, seguindo sua filosofia de analisar o momento e sua inserção num contexto mais amplo, concorda com a afirmação da presidente do Flamengo: sim, o clube foi bem. Disputar a Copa Libertadores significa que o clube foi bem no ano anterior.
 Chegar as oitavas-de-final da competição significa que a equipe fez uma boa campanha.
 Chegar às quartas-de-final significa uma campanha muito boa. Chegar às semi-finais significa uma campanha excelente. Chegar à final é uma campanha simplesmente excepcional.
 O título… Ora, título é título e é conquista de um só em meio a quarenta competidores (nessa edição 2010). Precisamos aprender a valorizar campanhas, a dar importância à consistência, à permanência e não somente a uma conquista que não poucas vezes é fruto de um acaso.
 Não é fácil disputar a Copa Santander Libertadores.
 Primeiro, pelos competidores em si, lembrando que a frase “não existem mais bobos no futebol” é muito verdadeira.
 Segundo, pelas diferenças dessa competição em relação às disputas brasileiras, a começar pela arbitragem.
 Terceiro, e não menos importante: em função de sua época de disputa, é muito comum os times brasileiros se encontrarem em processo de formação, de entrosamento, ou seja, ainda não estão prontos quando a disputa começa, logo nos primeiros dias de fevereiro, já tendo um deles passado (ou não) pela primeira fase classificatória.
 Então, foi bem, sim, o Flamengo nessa edição da Copa. Jogou contra equipes do Chile e da Venezuela, eliminou um igual do mesmo país e caiu diante de uma das equipes chilenas que já havia enfrentado na fase de grupos.
 Na verdade, todos os clubes brasileiros foram bem na Libertadores nesse ano, a começar pelo Corinthians, dono da melhor campanha da competição.
 Ah, mas faltou futebol.
Pois é, pode ter faltado futebol para uns, pode ter sobrado para outros, mas copas continentais devem ter uma leitura diferente dos torneios domésticos. Também posso dizer que faltou futebol ao time de Mourinho, tão óbvio e tão chato como vários times que estarão jogando na África do Sul no próximo mês, inclusive um de Pindorama. Nem por isso, entretanto, deixa de ser bom o time de Mourinho.
 Precisamos aprender a conhecer o futebol sul-americano e, fundamental, precisamos começar a respeitá-lo como adversário, sem nos julgarmos, aprioristicamente, como sempre no decorrer da história, como os reis da cocada preta, ou melhor, como os reis da bola.
 No mesmo sentido, também convém o Brasil, como um todo – povo, governo, empresas, instituições diversas –, conhecer mais e melhor os vizinhos."
(Olhar Crônico Esportivo - Emerson Gonçalves)

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